Interdisciplinaridade

Interdisciplinaridade

Por Renato Tresolavy

Existem algumas máximas que resistem ao tempo pela força universal que possuem, por sua capacidade de entender e explicar o mundo e seus eventos e de sintetizar a dinâmica das sociedades e suas transformações. Heráclito de Éfeso (535 a.C.- 475 a.C.), filósofo grego pré-socrático, é autor de uma dessas máximas que sobrevivem ao tempo. Dizia o filósofo que “A única constante é a mudança”. Para Heráclito, o mundo está em constante mudança, e essa mudança constante é uma realidade inevitável, quer a gente queira ou não.

Se voltarmos nosso olhar para o passado, observa­remos essa constante de mudanças através do tem­po, desde as mais antigas eras até hoje. Trazendo nos­so olhar de volta e fixando nossa análise no momento atual, considerando o século XXI em particular, perce­bemos que esse processo de mudança continua permanente, mas o ritmo das mudanças está cada vez mais acelerado. Ciência, tecnologia e as mais diversas áreas do conhe­cimento estão em permanentes transformações. As tecnologias de informação e comunicação, em especial, mudam em velocidade alucinante: cada vez mais pes­soas estão conectadas à internet, consumindo informa­ção e alimentando uma rede de dados que apresen­ta números cada vez mais superlativos. Só em 2012, mais de 51 milhões de páginas de internet foram adicionadas na web.

Não é à toa que hoje em dia falamos em socieda­de da informação e do conhecimento. O mundo con­temporâneo é marcado pela profusão de informações e cada vez mais pessoas conquistam acesso a elas. No entanto, informação não se confunde com conhecimento. No dizer do professor e filósofo Mario Sergio Cortella, “A informação é cumulativa e o conhe­cimento é seletivo.[1]” Nem sempre a informação dispo­nível se transforma em conhecimento efetivo. Um dos papéis da escola é contribuir para que esse processo de transformação se efetive, indicando caminhos, pro­porcionando acesso, orientando ações para que o aluno tenha a informação e seja capaz de selecionar aquela que realmente importa para em seguida transformá-la em conhecimento.

Nesse processo de aquisição de conhecimentos, essencial para lidar com fatos e fenômenos de nos­so exigente cotidiano atual, a escola tem percebido a necessidade cada vez mais urgente de diminuir a dis­tância entre as disciplinas, de quebrar a organização fragmentada e estanque com que elas são apresenta­das hoje, principalmente para atender as necessidades de uma sociedade em constante mudança e estabele­cer uma relação mais produtiva entre o que acontece no interior de seus muros e o que se passa fora deles, ou seja, a realidade pulsante da vida com toda sua complexidade. Afinal, o homem não é um ser isolado do mundo. Uma de suas características mar­cantes é a intercomunicação permanente com todas as esferas sociais, culturais, intelectuais e pessoais dispo­níveis. E é nesse contexto que a questão da Interdisciplinaridade entra com muita força. A interdisciplina­ridade deve ser ferramenta fundamental para atenuar as quebras existentes entre as disciplinas, procurando atender a complexidade dos fenômenos, que não se limitam a um campo único de conhecimento. A interdisciplinaridade torna-se indispensável como possibilidade de experi­ência da totalidade humana e universal. A interdiscipli­naridade na escola recoloca a ideia de integração entre ideias e conceitos como recurso fundamental para a produção de conhecimentos. ­

Para superar sua limitação com relação à organi­zação de currículo e atribuir significado ao processo de aquisição do conhecimento, a escola deve começar a assumir outra maneira de pensar e de fazer educa­ção, considerando as exigências da atual sociedade da informação e do conhecimento e a tendência de um ensino cada vez mais integrador. Essa superação passa por dois princípios importantes: a interdisciplinaridade e também a contextualização dos assuntos que fazem parte dos objetos de conhecimento das várias disciplinas que compõem o currículo escolar.

Contextualizar é articular o ensino com as diversas deman­das sociais que se apresentam na vida cotidiana do aluno. A interdisciplinaridade, por sua vez, tem relação direta com o ensino que promove a integração de disci­plinas, a inter-relação de saberes desenvolvidos não só pelos vários campos de conhecimentos, mas também pelas diferentes disciplinas que compõem o programa escolar e pelos temas transversais. Devemos seguir a recomendação do educador espanhol Jurjo Torres Santomé, que considera a interdis­ciplinaridade como ação que confere significado ao conteúdo escolar e ao mesmo tempo rompe com a divisão hermética das disciplinas. Não é difícil observar que todos os saberes se relacionam e dialogam entre si. Estabelecer uma inter-relação desses saberes é fundamental para superar desafios e para se posicionar crítica e ativamente dian­te das questões colocadas pela realidade. Contextualização e interdisciplinaridade são importantes pilares para a construção de um ensino integrador e independente, que contribua para a formação de indivíduos críticos e autônomos.

Se considerarmos as competências e habilidades pre­vistas em parâmetros e diretrizes curriculares oficiais, percebe-se que a interdisciplinaridade acontece como um processo quase que inerente ao exercício de lei­tura, de compreensão e também de escrita de textos, no caso da disciplina de Língua Portuguesa. Afinal, os alunos aprendem a língua no uso e, portanto, não se separa um momento para aprender a ler, outro momento para aprender a escrever e outro para apren­der a falar. Essas atividades acontecem simultanea­mente.

Na escola, é necessário que o professor promova ações interdisciplinares de acordo com as demandas de seus alunos ou de acor­do com o projeto pedagógico proposto pela escola. O importante é que a escola e seus agentes (professo­res, coordenadores, diretores, pais e alunos) assumam a interdisciplinaridade como uma proposta de mudan­ça dentro do ambiente educacional, uma mudança que não se limite a adaptar o ensino tradicional linear (cada vez mais esgotado), mas sim de superar, sempre que possível, os programas de disciplinas estagnadas, já que, como defendia Heráclito, o mundo é mesmo feito de mudanças.

 

[1] Sobre a relação entre informação e conhecimento, recomen­damos a leitura do artigo “O naufrágio de muitos internautas”, de Mario Sergio Cortella, publicado no jornal Folha de S.Paulo e disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq0607200025.htm. Acesso em: 07 jun. 2014.

 

Meu nome é Renato Luiz Tresolavy, sou editor de livros didáticos e fui professor de escola pública. Neste espaço do site Portuguêé Legal, gentilmente cedido pela minha amiga Carol Pereira, proponho discutir com estudantes, pais e professores assuntos que envolvem o ensino e aprendizagem de gramática, produção de textos, leitura e literatura. A cada semana, pretendo trazer aqui um tema diferente sobre o universo maravilhoso do Português.

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Gramáticas

Gramáticas

Por Renato Tresolavy

Na minha época de professor de Ensino Médio e EJA em escola pública, o que mais ouvia dos alunos no início do ano letivo era a confissão de que não sabiam gramática. Bastava que eu me apresentasse como o novo professor de português da turma e já podia ouvir suspiros e a queixa insistente:

– Professor, eu não sei nada de gramática!

Essa é uma opinião bem comum entre os alunos (não só entre alunos, no geral as pessoas sustentam a mesma tese, que é reforçada por muitos professores, infelizmente). Até compreensível, sem dúvida. Mas não deixa de ser preocupante também. Preocupa porque essa declaração deixa bastante claro que continua firme e forte a ideia de que aula de língua portuguesa é a mesma coisa que aula de gramática. Definitivamente não é, por pelo menos dois motivos: o estudo de língua portuguesa não se reduz só à gramática (e o estudo de texto, de gêneros textuais, de leitura, de oralidade e literatura?); e de fato não existe apenas uma gramática, há gramáticas. Reduzir o escopo da disciplina a apenas uma de suas partes constituintes e não considerar suas diversas possibilidades comprometem estudos importantes dentro da disciplina.

Justamente por esses dois motivos e para começar a derrubar alguns mitos que cercam as aulas de Língua Portuguesa, eu gostava de iniciar o curso aproveitando essa lamentação da classe para lançar uma provocação que invariavelmente deixava a turma confusa:

– Ora, mas de qual gramática vocês estão falando? Quais gramáticas vocês afirmam não conhecer?

Logo depois das perguntas vinha um silêncio. Nesse silêncio eu percebia no olhar dos alunos um misto de dúvida e desconfiança. Provavelmente duvidavam do que eu estava falando, desconfiavam de que eu falava besteira, certamente pensavam: Xiiii, esse professor tá louco! Mas logo eu tratava de provar que sim, eles sabem gramática, e desde muito cedo, ainda crianças, com 2 ou 3 anos de idade, já sabiam bem gramática, pelo menos uma das gramáticas que fazem parte do universo dos estudos de língua e linguagem. E que também existem outras gramáticas que eles ainda não necessariamente conhecem.

Na verdade, quando se fala de “Gramática”, pouca gente desconfia que pode estar se referindo a muitas coisas diferentes ao mesmo tempo. Segundo Irandé Antunes em seu livro “Muito Além da Gramática”, existe mais de uma gramática, cada uma diferente da outra, todas elas importantes e válidas dentro de seus limites e possibilidades. Vamos discutir neste texto quatro gramáticas diferentes que existem.

A gramática que os alunos conhecem com certeza (mas acreditam não conhecer) é a gramática internalizada, aquela que define o funcionamento de uma língua, de qualquer língua, não só da portuguesa (ou brasileira, por que não?!). Todos nós conhecemos totalmente essa gramática, desde bem pequenos. Quem fala uma língua sabe automaticamente a gramática dessa língua.  Vamos provar a existência dessa gramática: todos nós sabemos intuitivamente que o artigo, em português, ocorre antes do substantivo, em qualquer situação, e que a preposição que forma o complemento de verbo transitivo indireto, o objeto indireto, deve introduzir esse complemento. Ninguém diz: “Menino O caiu escada da.” Dizemos “O menino caiu da escada.” Ninguém precisou nos ensinar essas coisas, já sabemos que nossa língua funciona assim sem ao menos perceber. Outro exemplo: nesse calor insuportável que faz em São Paulo, tomar banho de piscina é irresistível. Meu sobrinho de 2 anos e meio ficou fascinado pela piscina do condomínio onde moro. Perguntamos para ele, em tom de brincadeira: – Nós vamos até a piscina!? E ele, rapidamente, disse: – Vamos! Veja que ele não disse “Vai”, “Vão” ou mesmo “Vou”. O menino empregou o verbo nas flexões corretas, de tempo e modo. Ele nem repetiu o pronome sujeito “Nós” e dispensou complementos redundantes, como “na piscina”, porque essas informações faziam parte do contexto de interação daquela conversa. Meu sobrinho sabe gramática! E é um catatau de dois aninhos!

A gramática que os alunos afirmam não saber é aquela que regula o uso da norma culta e que se tornou bastante popular nas escolas: a gramática normativa. Essa gramática é bastante específica, porque regula o que deve e o que não deve ser dito; ela é prescritiva e instaura a noção de erro em linguagem. A gramática da norma culta tem seu DNA, seu código genético, marcado por influências históricas, sociais e políticas. A língua também é um instrumento de poder e de coerção social e não só apenas um dos recursos que utilizamos para a comunicação. O fato de um modo de dizer ser mais prestigiado do que outro está ligado a muitas outras razões que não propriamente linguísticas. De qualquer forma, essa gramática de viés ideológico, que proíbe você de dizer: “Vou no cinema” (segundo a norma, o certo seria “Vou ao cinema”) e que protesta quando você inicia frase com pronome oblíquo, como “Me empresta o lápis?”, precisa fazer parte das aulas de língua portuguesa, os alunos devem conhecê-la, porque é a norma culta que se pratica em uma entrevista de emprego ou em outras situações de maior formalidade. A língua que o próprio aluno traz de casa, e que não é regulada pela norma culta e sim pelo uso, também deve ser valorizada e analisada, porque é tão funcional quanto essa regulada pela gramática normativa.

Uma terceira gramática ainda diz respeito a perspectivas de estudo sobre línguas. Há aqui um painel de possibilidades de estudos gramaticais, cada um deles com suas peculiaridades. Três exemplos apenas, há muitos outros: a gramática gerativa, voltada a aspectos cognitivos da linguagem, investiga a codificação e decodificação de novos enunciados pelo ser humano; a gramática normativa que, segundo Evanildo Bechara, não tem finalidade científica e sim pedagógica e recomenda como se deve falar e escrever segundo o uso e a autoridade dos escritores “corretos” e dos gramáticos e dicionaristas “esclarecidos”. Há ainda a gramática histórica, que é o estudo gramatical sob a perspectiva da evolução histórica dos fatos de uma língua.

Uma última gramática que pode ser citada aqui é a gramática como disciplina, como matéria de escola. Não é de hoje que muitas escolas particulares bem avaliadas dividem sua grade curricular de Língua Portuguesa em três frentes: Literatura, Produção de Textos e Gramática, muitas vezes com professores diferentes cuidando de cada frente de estudo. Na rede pública essa divisão não ocorre. Acontece que, em meu ponto de vista, essa separação não se sustenta e só serve para provocar desarmonia: como os estudos de texto, leitura e produção podem estar separados do estudo de gramática? É possível ler e escrever sem gramática? É possível estabelecer comunicação e interação só com gramática, sendo que a peça de comunicação verbal mais básica que existe é o texto? O que provavelmente predomina em aulas isoladas de gramática é a análise de frases soltas e artificiais, sem contexto e sem possibilidade de interação entre autores e leitores de texto. Trata-se de aulas que se concentram em classificações e definições, muitas vezes obscuras, como, por exemplo, descobrir que uma oração é subordinada substantiva subjetiva reduzida de infinitivo! A “Aula de Português” pode ser muito mais interessante e atraente do que ficar em sala de aula se concentrando em classificações e definições como essas. E a boa aula de português precisa começar por esclarecer o que entende por gramática, para o bem dos alunos.

 

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Receita de ano novo

Receita de ano novo

[Carlos Drummond de Andrade]

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Texto extraído do “Jornal do Brasil”, Dezembro/1997.

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Retrospectiva 2014

Retrospectiva 2014

O ano está chegando ao fim… e nosso projeto completou 1 ano de vida!

Para comemorar, que tal relembrar tudo o que foi feito ao longo desse tempo? Organizamos uma listinha para que você encontre com facilidade aquilo que mais te interessa.

PRINCIPAIS TEXTOS:

PRINCIPAIS DICAS DE PORTUGUÊS:

PRINCIPAIS TRECHOS SOBRE PRECONCEITO LINGUÍSTICO:

 

Pra terminar, Carol e Pablo lendo poemas no youtube e o link do canal que não conseguimos atualizar por muito tempo.

Agradecemos pelo apoio até aqui 😉

Esperamos conseguir atualizar com mais frequência em 2015.

Abraços!

https://www.youtube.com/user/Portugueselegal

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