27 Março 2018

“[…]

Pode-se fazer uma foto dizer o que se quiser! Um texto, um filme, um discurso também – basta recortar um pedacinho e colocá-lo, higienicamente, numa bela página. O trecho “extraído” adquire imediatamente uma coloração diferente, às vezes um sentido completamente diferente! Tudo depende do lugar em que se faz o corte. Tudo depende de quem está com a tesoura e com a cola.

Os jornalistas do show business conhecem bem a coisa. Eles pegam uma frase excitante de um artigo e a servem sozinha no título. Mesmo se a matéria é um verdadeiro desastre e se a crítica foi escrita com veneno, há sempre uma frasezinha, um pedaço de frase que pode servir. “RITMO ENDIABRADO! SURPREENDENTE PERFORMANCE DOS ATORES!”… Sedutor! Principalmente se não se informa o que havia em volta: “Brincadeiras idiotas e trocadilhos sem sentido se encadeiam em um ritmo endiabrado. Surpreendente performance dos atores, que tiveram a coragem de encenar todos os dias até o fim essa peça indigesta…” E situações tão grosseiras quanto essa acontecem de fato. Mas há também casos mais sutis. Quando os políticos se citam mutuamente, a coisa acaba sempre em barraco; eles “deformam” o pensamento do outro citando apenas um trechinho. O outro berra ‑ claro, um pensamento deformado faz supermal. Pode causar prejuízos, pode dar um monte de problema.

Mesmo quando o recorte parece ser honesto, mesmo quando é feito com a melhor das intenções (há sempre uma intenção!), uma “passagem” de um livro raramente dá uma ideia correta do conjunto de seu conteúdo. Na hora em que a gente vai ler o livro inteiro, fica surpreso ao reler o tal trecho; no virar das páginas a gente tem dificuldade em reconhecê-lo. O “trecho escolhido” tinha adquirido uma espécie de vida independente, então pena para se reintegrar na meada da história. O tom, o espírito não é mais o mesmo; uma vez desambientado de seu território, o trecho adquire subitamente uma outra cor, uma luminosidade diferente.

Um exemplo famoso: várias gerações de alunos só conheceram da obra de Jules Vallès[LLF1]  a passagem transcrita a seguir, que foi um hit dos livros didáticos.

Tenho respeito pelo pão.

Um dia, joguei uma migalha, meu pai foi apanhá-la. Nem me falou asperamente como faz sempre.

“Meu filho”, disse ele, “não se deve jogar fora o pão; é difícil ganhá-lo. Nós não temos demais para nós, mas, se tivéssemos, deveríamos dá-lo aos pobres. Um dia você talvez não tenha e verá o que ele vale. Lembre-se disso que estou lhe dizendo, meu filho!”.

Nunca me esqueci.

Essa observação, que, pela primeira vez talvez em minha juventude, me foi feita não com cólera, mas com dignidade, penetrou até o fundo da minha alma; desde então, tenho respeito pelo pão. As colheitas foram, para mim, sagradas; jamais esmaguei um ramo ao colher um papoula ou uma centáurea-azul; jamais matei no caule a flor do pão!

Jules Vallès, L’Enfant.

Belo como um sermão! Infelizmente, esse trecho célebre – praticamente o único do tipo em todo o livro – transmite uma imagem adocicada, bem pensante e moralizadora que não tem muito que ver com o autor de L’Enfant (O filho), livro irônico e amargo no qual Jules Vallès faz um acerto de contas com a família e com a sociedade. Ou seja: trata-se de uma imagem falsa.

[…]”

Claude Duneton e Jean-Pierre Pagliano. Anti-manuel de français. Paris: Éditions do Seuil, 1978. p. 15-16.

 [LLF1]

Jules Vallès (1832- 1885) foi um jornalista, escritor e político francês. Fundador do jornal Le Cri du Peuple (O Grito do Povo) esteve entre os representantes eleitos da Comuna de Paris em 1871. Condenado à morte, teve que se exilar em Londres, de 1871 a 1880. (Baseado em: Wikipédia)

 

“[…] Pode-se fazer uma foto dizer o que se quiser! Um texto, um filme, um discurso também – basta recortar um pedacinho e colocá-lo, higienicamente, numa bela página. O trecho “extraído” adquire imediatamente uma coloração diferente, às vezes um sentido completamente diferente! Tudo depende do lugar em que se faz o corte. Tudo depende de […]

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24 Dezembro 2017

Sonho: conhecer uma língua estrangeira (estranha) e, no entanto, não compreendê-la: nela perceber a diferença sem que essa diferença seja jamais recuperada pela sociabilidade superficial da linguagem, da comunicação ou da vulgaridade; conhecer, refratadas positivamente numa nova língua, as impossibilidades da nossa; aprender a sistemática do inconcebível; desfazer nosso “real” pelo contato com outros recortes, outras sintaxes; descobrir posições inusitadas do sujeito na enunciação, deslocar sua topologia; numa palavra, descer ao intraduzível, provar sua convulsão sem jamais amortecê-la, até que se abale todo o Ocidente em nós e que vacilem os direitos da língua paterna, aquela que nos vem do pai e que nos torna também pais e proprietários de uma cultura que a história precisamente transforma em “natureza”. Sabemos que os principais conceitos da filosofia aristotélica foram de certa forma forjados pelas principais articulações da língua grega. Como seria benfazejo se, inversamente, nos transportássemos para uma visão das diferenças irredutíveis que uma língua muito longínqua pode nos sugerir, por lampejos. […]

Roland Barthes. O império dos signos. Tradução de Lúcia Leal Ferreira.

Sonho: conhecer uma língua estrangeira (estranha) e, no entanto, não compreendê-la: nela perceber a diferença sem que essa diferença seja jamais recuperada pela sociabilidade superficial da linguagem, da comunicação ou da vulgaridade; conhecer, refratadas positivamente numa nova língua, as impossibilidades da nossa; aprender a sistemática do inconcebível; desfazer nosso “real” pelo contato com outros recortes, […]

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24 Agosto 2017

 

Entrevista do escritor Christian Bobin para a revista francesa Nouvelles Clés em março de 2004.

 Tradução de Lúcia Leal Ferreira

Um permanente apaixonado, mas que soube integrar ao seu júbilo e às suas febres a lentidão, a paciência, o silêncio e até o vazio. Um homem que sabe nos fazer sentir a plenitude luminosa daquilo que poderia parecer ausências cinzentas, mas com tanta sutiliza que trememos ainda por muito tempo depois de tê-lo lido. Durante anos, seus livros foram publicados por pequenas editoras (Branda, Paroles d’Aube, Le Temps qu’il fait, Théodore Balmoral, ou ainda, e sobretudo, Fata Morgana). E eis que em 1992, a grande Gallimard (que devia estar de olho nele há muito tempo) publica seu magnífico retrato de Francisco de Assis (ele não diz “Santo”, a maiúscula lhe parece excessiva). Le très bas é uma obra-prima. Christian Bobin começou a fazer muito sucesso, mas isso não o estragou.

 

Nouvelles Clés: De onde vem tanta calma?

Christian Bobin: Deve vir de muito longe. Da infância. Os livros vêm de lá, na minha opinião. A tagarelice dos livros vem de um estado de mudez da infância. Bem antes de saber ler e escrever, acontecem coisas. Ou coisas não acontecem. Tenho a sorte de vir de uma família calma, tranqüila. Sempre me senti amado. E depois, sou do Creusot, e lá não há acontecimentos.

 

N.C.: Você continua vivendo lá e se sente visivelmente confortável…

C.B.: Talvez um fio nunca se tenha rompido, na base. Em casa, o sentimento que dominava, a nota que dava o tom, e que continua sendo a minha hoje, era um sentimento estranhamente feliz de que nada acontece, apesar de estarmos sempre esperando que algo aconteça. Parece contraditório, mas, ao contrário, são coisas que combinam muito bem. Não tenho praticamente nenhuma lembrança da infância. Não me imagino, um dia, escrevendo minhas memórias. Elas caberiam, no máximo, em duas ou três páginas! Sobre minha infância, reina um sentimento de brancura. Uma luz se esparrama, numa cidade firmemente controlada por uma sólida indústria, onde tudo parecia durar para a eternidade. Entretanto, já na época de meu nascimento, em 1951, aquele mundo estava desmoronando. Mas a nota básica, esse sentimento misturado de indiferença e de espera em relação ao mundo, eu o conservei. Muitas coisas passam por mim sem deixar rastro. Eu as vejo, tomo conhecimento delas, mas elas escorregam… Não se trata de jeito nenhum de desprezo, de ignorância. Eu leio os jornais, desde a seção de esportes até a de política. Tento saber o mais possível. Mas essas coisas me atravessam. Claro, há às vezes momentos mais “despertos” — maio de 68 ou a queda do muro de Berlim. Mas esses são momentos coletivos, difíceis de pensar. Não tenho a cabeça politicamente organizada, e o mínimo que se pode dizer é que tenho bem pouco apreço pelo que é coletivo. Por exemplo, nunca tive medo de não ser publicado. A perspectiva de que recusassem tudo que eu escrevesse me deixava totalmente indiferente. Estava pouco ligando, mesmo. E compreendi pouco a pouco que esse estado não era necessariamente o mesmo de todos os que escrevem. Para mim, foi assim desde que, adolescente, comecei a escrever meus primeiros poemas.

 

N.C.: Ao lê-lo, temos a impressão de que, para você, o essencial está nos detalhes…

C.B.: Isso combina com o resto, com esse outro sistema mental — a palavra sistema não é a melhor, mas para ir mais rápido vou usá-la mesmo assim —, essa mistura de apatia e de afastamento, que permite uma acuidade formidável sobre o que se passa. No fundo, é só isso, mesmo. O que quer dizer que me sinto, na sociedade, como o garoto no pátio do recreio que não participa das brincadeiras com os outros. Não é que ele seja rejeitado. Não é que despreze os outros — teria antes um sentimento de admiração por eles. Mas sempre dava um passo para o lado… Todas as crianças estão ali, no pátio, elas pulam, elas gritam, elas brincam. E está tudo bem. Mas há uma que se afasta, fica sentada num canto, olhando. Ele tem uma fabulosa vista do que está acontecendo. Pois bem, para mim, essa situação nunca teve fim. Continuo lá, sentado no pátio do recreio…

 

N.C.: Mas, apesar de ter continuando sentado no pátio do recreio, você estudou, não?

C.B.: Sim, filosofia. Mas lá também, fiquei olhando as coisas passarem. Tenho que confessar que tive uma paixão por Platão. E por Kierkegaard, que eu amava muito. Não por acaso: é uma das figuras mais selvagens da história da filosofia. Foi praticamente o único da época que ousou, com um pensamento firme, coerente, resistir à grande moda hegeliana — resistir a Hegel, que já trazia o bebê Marx em seu ventre! Em nome de quê, ele resistia? Em nome do individual, do singular, contra o pensamento globalizante, generalizante e, em germe, totalizante, totalitário! Mas talvez nada tenha de fato mudado desde Kierkegaard. Há sempre regras, e não respeitá-las custa caro. No mínimo: o preço da solidão. Felizmente, no meu caso, tenho boas raízes. Foi também por isso que tive vontade de escrever sobre Francisco de Assis. Concordo que seja uma pessoa que fala do céu — em certo sentido, ele só fala mesmo disso, mas com um amor incrível pela terra. Era um ser profundamente encarnado. Nos anos 60, caminhei sozinho, fora dos lugares onde “era preciso estar”. Devo dizer que nunca tive a menor necessidade de um mestre, provavelmente porque tive um pai que era realmente um pai. O que mais me impressionava nos intelectuais e literatos que conduziam o trem (no qual eu não subiria por nada deste mundo, nem mesmo para um pequeno trajeto) — o trem da língua, da palavra, da literatura (que correspondia também a outras coisas no plano social) — era sua terrível frieza. Correntes de ar gelado que cheiravam a morte. Sempre senti a morte nos pensamentos desencarnados, genéricos, abstratos. Por vezes eles dão bons livros. Mas eu não seria mais capaz de entrar numa teoria literária do que numa teoria política ou científica, porque teorizar é vestir as roupas da morte, e isso não me interessa.

 

N.C.: Um sábio oriental diria que você tentou evitar a armadilha do mental.

C.B.: Sim, pode-se dizer isso. Mas nem sempre tive clareza disso. Apesar de me obstinar, com uma teimosia infantil. Continuei obstinadamente a escrever — e a viver — a meu modo. O problema é que a fôrma universitária logo me pareceu, ela também, mortal. Eu lia muito, mas a maior parte das leituras não entrava na minha vida. Eu via passar uma inteligência, mas não a sentia como determinante em minha encarnação. Então, fiquei desempregado… (risos) Tive alguns pequenos trabalhos — por exemplo, fui atendente num hospital — mas raramente mais do que um mês. Minha melhor lembrança dessa época são os dias inteiros passados na biblioteca municipal. Sempre a mesma coisa. É um universo feminino, onde reina uma presença animal do livro. Depois, fui parar num instituto de pesquisa de arqueologia industrial. Eu tinha que organizar materialmente os colóquios. Desse posto tranquilo de observação, olhei a passagem do ar do tempo. E assim vi — dramaticamente — a economia não se bastando na sua própria área e começando a se expandir como uma epidemia ou como uma hemorragia na área cultural. Quer dizer, assisti ao momento grotesco em que as pessoas de cultura começaram a falar em gestão. O estado social das coisas, como o estado mental de uma época, tende a nos parecer eterno. Todas as espessuras que nos separam uns dos outros, todos os pesos sociais, as cretinices políticas, vivemos essas coisas como se elas fossem durar para sempre. Por exemplo, achávamos isso da União Soviética. E no entanto tudo desmoronou de uma só vez, de maneira imprevisível. E já faz vinte anos que vivemos sob o reino do discurso econômico, essa nulidade, esse discurso que lembra as línguas mortas. Mas ele não se sustenta, e portanto não vai se sustentar. Não posso dizer quando, mas sei que ele vai quebrar, e quando observo os jovens e, de vez em quando, vejo o que vem à tona, sei que a reviravolta se fará com uma incrível violência.

 

N.C.: Você escrevia, há mais ou menos quinze anos, grosso modo para um círculo restrito de 500 leitores, e de repente você está famoso, em toda parte pronunciam seu nome com uma espécie de veneração.

C.B.: Não exageremos, não sou tão conhecido. Mas pouco importa, eu me digo que, se meus livros agradam, eles devem morder o ar do tempo, algo que está por vir. Uma sede. Felizmente, os economistas vão multiplicar os estudos de mercado mas não conseguirão industrializar completamente o livro. Os editores sabem disso: há algo de essencialmente imprevisível na emergência de um grande livro. É gozado, mas, ao contrário do que se diz, eu não acho que os livros pertencem ao campo da literatura — que, afinal, é um cantinho — mas ao campo da vida, isto é, do desejo. Ora, não se pode suscitar artificialmente um desejo. As necessidades, sim, é possível criá-las e satisfazê-las, ou não. Preciso de uma maçã, eu a compro, eu a como, a necessidade é momentaneamente satisfeita. O desejo é outra coisa, é uma história de amor, uma história passional que vai entrar profundamente na vida do outro. O desejo abala a carne, o espírito, tudo.

 

N.C.: Novo, renovação… No entanto, dizem que você nunca deixa o Creusot, que você jamais viaja.

C.B.: Nunca gostei de viajar, é verdade. Uma só coisa me interessa: o encontro. Penso que ele pode se dar na porta de casa como no fim do mundo. Não sinto necessidade de dar aos meus encontros paisagens outras, porque acredito que está tudo ali, no pátio de recreio onde o garoto está sentado vendo os outros brincarem… É um pátio pequeno, numa escola pequena, numa cidadezinha, e no entanto o universo está todo lá. Estou persuadido disso.

 

N.C.: Esse é o Sidarta de Herman Hesse, que, depois de uma vida passada a buscar nos quatro cantos do mundo, descobre que tudo estava ali, na margem do rio. Você descobriu isso quando era criança!

C.B.: Foi um golpe de sorte! Quer sejamos ricos ou pobres, quer viajemos muito ou fiquemos sempre no mesmo lugar, vivemos todos, afinal, um pobre punhado de coisas, de pobres ideias fixas, um punhado de desejos. A riqueza, a abundância vem da forma que damos a esse punhado de coisas E essa forma é única para cada um.

 

 

Christian Bobin

  Entrevista do escritor Christian Bobin para a revista francesa Nouvelles Clés em março de 2004.  Tradução de Lúcia Leal Ferreira Um permanente apaixonado, mas que soube integrar ao seu júbilo e às suas febres a lentidão, a paciência, o silêncio e até o vazio. Um homem que sabe nos fazer sentir a plenitude luminosa […]

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