O calendário juliano e a língua que falamos

O calendário juliano e a língua que falamos

Houve uma época do passado em que o ano começava em março, sendo janeiro e fevereiro os dois últimos meses. Daí decorre que o nome do mês de SETEMBRO (September, setiembre, septembre, settembre etc.) não era arbitrário: tratava-se do sétimo mês do ano.

Quando, em 46 a.C., Júlio César alterou o calendário, implantando o que ficaria conhecido como calendário juliano, setembro passou a ser o mês 9, deixando de ter relação com seu nome.

Hoje em dia, essa “estranheza” não nos causa estranheza; apenas aprendemos essa informação sem questionar. O mês NOVE não é o “NOVEmbro”, mas o “SETEmbro”, e está tudo bem.

Concordemos ou não com a mudança feita por Júlio César, ela aconteceu e foi incorporada no cotidiano de tal modo que, embora provavelmente tenha causado incômodo nas pessoas que tiveram de se adequar a ela naquela época, já se naturalizou.

Mudanças acontecem, sejam elas “naturais” ou “implantadas”. E a gente se acostuma com elas, não é? Depois de um tempo, já nem lembra como era antes e a nova realidade passa a ser vista com naturalidade. Parece mensagem motivacional, mas é só uma provocação para quem acredita que é preciso “lutar” para “preservar” nossa língua tal como ela é.

O exemplo clássico para ilustrar essa ideia é a metamorfose pela qual passou nosso pronome de tratamento “você”. Para nós, trata-se da maneira “correta” de “falar e escrever” o português. Para quem tenha nascido um pouco antes de nós, entretanto, certamente essa grafia causara incômodo, uma vez que o que era considerado correto anteriormente era o “voscê”. Mas para quem nasceu um pouco antes dos falantes de “voscê”, esse pronome certamente pareceu uma redução preguiçosa e errada do correto “vosm’cê”. Vocês bem sabem, porém, que “vosm’cê” nada mais era que uma simplificação de seu predecessor “vosmecê”, que, por sua vez, foi a simplificação do “vossemecê”, que também resultou da simplificação do “vossa mercê”.

Quando um falante afirma que as pessoas estão assassinando a língua portuguesa, a que língua está se referindo? Porque o próprio uso do “você”, tão comum nos dias de hoje, seria considerado um assassinato inaceitável alguns séculos atrás. Quando alguém argumenta que os linguistas querem simplificar a língua porque somos incapazes de ensiná-la, me pergunto se essa pessoa escreve “pharmácia”, “craro” (para “claro”), “coraçom” (para “coração”), “molier” (para “mulher”), “arbores” (para “árvores”), “phase”, “lagryma”, “psychologico” e até “portuguez”, que já foram consideradas corretas e não são mais.

Assim como não nos incomoda chamar o nono mês do ano de setembro, também não parecemos constrangidos por ter mexido na grafia do português de séculos atrás (Se houvesse constrangimento, certamente escreveríamos “jnoramçia” e não “ignorância”, “lête” e não “leite”, “lympeza” e não “limpeza” e assim por diante). Por que tanta relutância em permitir que a língua que usamos hoje também mude? O fato é que ela vai mudar independentemente de nossa vontade ou permissão. Já mudou e continua mudando.

Como costuma afirmar o professor Marcos Bagno, não faz sentido querer proteger uma língua de seus próprios falantes. Alguém discorda?

 

Escrito por
Carolina Pereira | carolinajesper@gmail.com | @carolinajesper

Mestre em Educação (USP), especializada em Tradução (UGF), graduada em Letras (USP)

Variação diacrônica do pronome de tratamento você / vossa mercê / vosmecê

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.Autoria: Carol Pereira

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A educação como negócio

A educação como negócio

No Brasil, parece consensual a ideia de que uma educação de qualidade deve ter início logo nos primeiros anos de escolarização. Entretanto, é rara a percepção de que mudar as bases da educação requer, como princípio, que se estabeleça o foco no ensino universitário, uma vez que é o ambiente acadêmico o local em que ocorre a formação de professores, seja na Pedagogia ou nas licenciaturas. Apesar da constatação acerca da necessidade de aumentar investimentos e melhorar a qualidade do ensino nos cursos de ensino superior, o que as pesquisas revelam é um expressivo crescimento de universidades com ensino de baixa qualidade no Brasil.

De acordo com o Indicador de Alfabetismo Funcional divulgado pelo Instituto Paulo Montenegro (IPM) e pela ONG Ação Educativa, há, entre os estudantes do ensino superior, uma parcela de 38% que não tem domínio de habilidades básicas de leitura e escrita. Embora o acesso ao estudo tenha sido ampliado (dados do IBGE mostram, por exemplo, que, entre 2000 e 2009, aproximadamente 30 milhões de estudantes ingressaram nos ensinos médio e superior), o crescimento acelerado acarretou também uma queda significativa na qualidade do ensino, o que leva especialistas a colocar em xeque a ideia de que o ensino está sendo, de fato, democratizado. Ainda que alunos de diferentes classes sociais tenham passado a ter acesso a ele, a conclusão dos estudos nem sempre revela um avanço educacional verdadeiro.

Quais são as implicações de a educação ter sido transformada em negócio? Mais que isso: por que o ensino de baixa qualidade tem sido considerado uma demanda no Brasil? Alguns fatores ajudaram a aumentar a demanda por vagas universitárias, como o crescimento econômico, que gerou a necessidade de maior qualificação da mão de obra, e o aumento do número de vagas no ensino médio, por exemplo. A ampliação acelerada do setor privado nas últimas décadas, portanto, foi impulsionada pelo fato de consistir em uma maneira de atender a essa demanda de massa, absorvendo estudantes que o Estado não conseguia comportar.

Nas últimas décadas, a preocupação educativa passou a dar lugar à lógica de mercado, o que aconteceu sobretudo depois um decreto de 1997 (posteriormente revogado) permitindo finalidade lucrativa para entidades educacionais particulares. Segundo a professora Helena Sampaio, também pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP, esse texto “fomentou e legitimou a mercantilização” do ensino. Com a educação transformada em mercadoria, tornou-se comum observar situações como a de regiões em que a oferta de vagas é maior que o número de concluintes do ensino médio, o que leva as universidades à busca por estratégias que tornem seus cursos cada vez mais atraentes. Os alunos, agora transformados em “clientes estudantis”, passam a ser vistos como potenciais consumidores e se tornam o alvo de mensagens que propagandeiam como imprescindíveis cursos que, há pouco, nem mesmo existiam. É possível considerarmos que o quadro de mercantilização da educação se deva a uma mudança de valores na sociedade, uma vez que se passou a difundir a ideia acerca da importância (ou indispensabilidade) da educação formal.

[continuação]

Leia o texto completo aqui: http://obviousmag.org/mar_me_quer/2015/09/a-educacao-como-negocio.html#ixzz3nK0Gna1T
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Escola e a Revolução

Escola e a Revolução

Por Renato Tresolavy

Em maio deste ano, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou o ranking internacional de desempenho em educação. Dos 76 países avaliados, o Brasil ficou na 60ª posição, ou seja, lugar bem pouco confortável que revela a baixa qualidade de ensino no país. Nós brasileiros, no dia a dia, convivemos com uma rotina de greves de professores, infraestrutura escolar precária, e ultimamente descaso dos governos com relação aos investimentos em educação, problemas que certamente geram impactos diretos e negativos nas avaliações de desempenho que a OCDE revela.

Penso que para além desses problemas, todos muito graves e que precisam ser administrados e minimizados continuamente, é preciso analisar também, até com mais urgência, o sistema escolar que ainda hoje vigora não só aqui no Brasil, mas também na maior parte do mundo. A escola de hoje, do século XXI, ainda é, em muitos aspectos, bem parecida com o modelo de escola criado no século XII (crianças nas carteiras e professores nas salas de aula) e que se consolidou na Inglaterra, em meados do século XIX, época da Revolução Industrial, e se reproduziu pelo mundo. Matriculamos nossos filhos em escolas que ainda hoje funcionam como se estivessem preparando cidadãos para os trabalhos mecânicos de linhas de montagem. Até mesmo a estrutura da escola e seu funcionamento de aula em aula (com disciplinas geralmente desconectadas entre si) lembra uma esteira industrial.

Evidentemente que cada vez mais o modelo de escola que temos hoje, de característica industrial, não pode atender as demandas de uma sociedade como a nossa, cada vez mais digital, diversificada, interdependente, globalizada e em constante mudança. O jovem que hoje vai para a escola é aquele que em casa acessa Youtube e Google na tela de seu computador ou mesmo celular, isso para citar somente dois gigantes de tecnologia que são fontes de informação e conhecimento. Não deve causar nenhum espanto em pais e professores o tédio, a passividade e desmotivação que os alunos sentem ao chegar à escola industrial de métodos quase medievais. Para além da solução das crises que rondam a escola, é preciso solucionar a própria escola.

O autor e professor espanhol Ángel Pérez Gómez, no livro Educação na Era Digital: a Escola Educativa, defende que a escola de hoje ensina, acima das disciplinas, cinco maus exemplos: confusão, posição, indiferença, dependência emocional e intelectual e uniformidade e falta de identidade. A lista de problemas é bastante categórica e dura com o sistema escolar, mas não se pode ignorá-la, se realmente professores, pais, alunos, governos e órgãos privados quiserem de fato iniciar um processo de transformação na escola. Caso contrário, continuaremos obrigados a repetir eternamente o refrão da canção Another Brick in the Wall, de Pink Floyd: “Não precisamos de nenhuma educação/Todos são somente tijolos na parede”. A música e o clipe da banda são ainda bastante atuais, infelizmente.

A confusão de que fala o autor refere-se ao fato de que muito do que se estuda na escola é matéria descontextualizada, desconectada da vida real e dos projetos pessoais dos alunos, fragmentada por disciplinas que não dialogam entre si. A posição é a obrigação de os alunos ocuparem seus lugares de maneira fixa, sem espaço para liberdade física e intelectual. Particularmente pra mim, a indiferença é o ponto mais grave apontando por Ángel: na escola, segundo ele, não se deve acreditar demais em nada. As aulas são divididas em fragmentos de 50 minutos, separadas pelo sinal que toca a cada troca de aula. Tudo na escola começa e termina de acordo com o sinal da escola: se algum projeto, alguma ideia estiver sendo desenvolvida em uma aula e o sinal tocar, fim de projeto, fim de ideias, passa-se para outra aula, para outra ideia, ou seja, nada vale a pena na escola, a sensação que fica é de que tudo na escola é descartável e substituível.  A dependência emocional e intelectual liga-se ao fato de que tudo na escola funciona baseado em recompensas e punições, notas e reconhecimento e na necessidade de dizer o que vale e o que não vale. Essa dependência gera uniformidade e falta de identidade: não há optatividade muito menos espaço para o desenvolvimento de projetos pessoais.

O Brasil é pródigo em buscar respostas simples para problemas sociais complexos e em atacar os efeitos de um problema e não as suas causas (as discussões inócuas sobre redução da maioridade penal comprovam essa característica nacional). Acredito que o desempenho brasileiro em educação só passará a apresentar níveis aceitáveis quando efetivamente a sociedade brasileira como um todo repensar o sistema escolar em si para propor uma revolução na educação do país, começando por tentar superar os cinco aspectos escolares levantados pelo autor espanhol. E essa revolução é urgente, necessária e praticável, embora não seja  fácil de ser deflagrada. Dela depende o futuro da educação no país e consequentemente o futuro de crianças e jovens, que não podem ser responsabilizados pelas deficiências de aprendizagem que apresentam. Nosso sistema escolar é antiquado e não satisfaz as demandas sociais, profissionais e afetivas dos jovens de hoje. Se há um culpado para tantos resultados ruins em educação, esse culpado é o sistema escolar em si (e os administradores desse sistema) que, de forma geral, mas não unânime, confunde, uniformiza e cultiva indiferença. Quem sabe essa revolução dentro do sistema escolar, a partir de seu núcleo, possa ser o fator preponderante para impulsionar a qualidade da educação no país?

 

 

Meu nome é Renato Luiz Tresolavy, sou editor de livros didáticos e fui professor de escola pública. Neste espaço do site Portuguêé Legal, gentilmente cedido pela minha amiga Carol Pereira, proponho discutir com estudantes, pais e professores assuntos que envolvem o ensino e aprendizagem de gramática, produção de textos, leitura e literatura. A cada semana, pretendo trazer aqui um tema diferente sobre o universo maravilhoso do Português.

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