O que fazemos com certas palavras quando as usamos demais?

Li, certa vez, que o valor das coisas está em sua raridade. De fato, não nos surpreenderíamos com cantores líricos se tivéssemos todos nascido com a mesma habilidade para o canto, nem ficaríamos curiosos ao ver Ferraris imponentes se houvesse uma dessas na garagem de cada um de nós. Não há o que discutir: quanto mais raras, mais preciosas são as coisas. Será que o mesmo raciocínio não funciona no campo das palavras?

Um dos problemas provenientes do uso excessivo de algo é o aniquilamento de suas possibilidades de impacto. Se qualquer piada tosca é “genial”, a ideia de genialidade se dissipa; se amamos todo mundo, convém repensar o conceito de amor; se dizemos a cada um de nossos amigos o quanto são especiais, inevitavelmente ninguém o é; e se chamamos de tragédia um corte de cabelo que deu errado, como expressar a surpresa diante de um infortúnio concreto?

Quando foi divulgada a notícia de que médicos cubanos ganhariam menos que os brasileiros, por exemplo, a acusação de “trabalho escravo” alastrou-se pelas redes. Receber um salário pequeno, entretanto, não é suficiente para configurar escravidão. Também foi a expressão “trabalho escravo” que se difundiu quando se soube de um projeto que obrigaria os estudantes de medicina a trabalhar dois anos no SUS com uma bolsa entre R$ 3 mil e R$ 8 mil. Se o uso da expressão se torna trivial, como diferenciar os casos em que um trabalho efetivamente irregular demandaria mais seriedade e urgência?

Evidentemente, não ignoramos a construção de acepções simbólicas, sentidos figurados, hipérboles intencionais, mas cabe refletirmos se nossa seleção vocabular não evidencia uma reação desproporcional de nossa parte, uma incapacidade de distinguir o valor de fatos destoantes.

Embora as palavras possam conferir notoriedade a nossos argumentos, banalizá-las, em alguns casos, parece revelar algo de equivocado em nós. Quando o luto passa a ser um sentimento que se tem perante qualquer contrariedade, seja uma discordância relativa à vida privada ou um fato como a derrota de um candidato político, o que guardamos de especial para expressar o pesar profundo diante da perda de alguém? Ainda que palavras desgastadas não minimizem o horror ou a transcendência dos fatos, certo pudor ou parcimônia em seu uso pode resguardá-las de perder sua essência.

Afinal de contas, qual o sentido de despi-las justamente daquilo que faz delas impactantes?

 

Carol é formada em Letras, trabalha com livros didáticos e faz mestrado em Educação. carolinajesper@gmail.com | @minaszilda

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