10 Fevereiro 2015

Por Renato Tresolavy

Na minha época de professor de Ensino Médio e EJA em escola pública, o que mais ouvia dos alunos no início do ano letivo era a confissão de que não sabiam gramática. Bastava que eu me apresentasse como o novo professor de português da turma e já podia ouvir suspiros e a queixa insistente:

– Professor, eu não sei nada de gramática!

Essa é uma opinião bem comum entre os alunos (não só entre alunos, no geral as pessoas sustentam a mesma tese, que é reforçada por muitos professores, infelizmente). Até compreensível, sem dúvida. Mas não deixa de ser preocupante também. Preocupa porque essa declaração deixa bastante claro que continua firme e forte a ideia de que aula de língua portuguesa é a mesma coisa que aula de gramática. Definitivamente não é, por pelo menos dois motivos: o estudo de língua portuguesa não se reduz só à gramática (e o estudo de texto, de gêneros textuais, de leitura, de oralidade e literatura?); e de fato não existe apenas uma gramática, há gramáticas. Reduzir o escopo da disciplina a apenas uma de suas partes constituintes e não considerar suas diversas possibilidades comprometem estudos importantes dentro da disciplina.

Justamente por esses dois motivos e para começar a derrubar alguns mitos que cercam as aulas de Língua Portuguesa, eu gostava de iniciar o curso aproveitando essa lamentação da classe para lançar uma provocação que invariavelmente deixava a turma confusa:

– Ora, mas de qual gramática vocês estão falando? Quais gramáticas vocês afirmam não conhecer?

Logo depois das perguntas vinha um silêncio. Nesse silêncio eu percebia no olhar dos alunos um misto de dúvida e desconfiança. Provavelmente duvidavam do que eu estava falando, desconfiavam de que eu falava besteira, certamente pensavam: Xiiii, esse professor tá louco! Mas logo eu tratava de provar que sim, eles sabem gramática, e desde muito cedo, ainda crianças, com 2 ou 3 anos de idade, já sabiam bem gramática, pelo menos uma das gramáticas que fazem parte do universo dos estudos de língua e linguagem. E que também existem outras gramáticas que eles ainda não necessariamente conhecem.

Na verdade, quando se fala de “Gramática”, pouca gente desconfia que pode estar se referindo a muitas coisas diferentes ao mesmo tempo. Segundo Irandé Antunes em seu livro “Muito Além da Gramática”, existe mais de uma gramática, cada uma diferente da outra, todas elas importantes e válidas dentro de seus limites e possibilidades. Vamos discutir neste texto quatro gramáticas diferentes que existem.

A gramática que os alunos conhecem com certeza (mas acreditam não conhecer) é a gramática internalizada, aquela que define o funcionamento de uma língua, de qualquer língua, não só da portuguesa (ou brasileira, por que não?!). Todos nós conhecemos totalmente essa gramática, desde bem pequenos. Quem fala uma língua sabe automaticamente a gramática dessa língua.  Vamos provar a existência dessa gramática: todos nós sabemos intuitivamente que o artigo, em português, ocorre antes do substantivo, em qualquer situação, e que a preposição que forma o complemento de verbo transitivo indireto, o objeto indireto, deve introduzir esse complemento. Ninguém diz: “Menino O caiu escada da.” Dizemos “O menino caiu da escada.” Ninguém precisou nos ensinar essas coisas, já sabemos que nossa língua funciona assim sem ao menos perceber. Outro exemplo: nesse calor insuportável que faz em São Paulo, tomar banho de piscina é irresistível. Meu sobrinho de 2 anos e meio ficou fascinado pela piscina do condomínio onde moro. Perguntamos para ele, em tom de brincadeira: – Nós vamos até a piscina!? E ele, rapidamente, disse: – Vamos! Veja que ele não disse “Vai”, “Vão” ou mesmo “Vou”. O menino empregou o verbo nas flexões corretas, de tempo e modo. Ele nem repetiu o pronome sujeito “Nós” e dispensou complementos redundantes, como “na piscina”, porque essas informações faziam parte do contexto de interação daquela conversa. Meu sobrinho sabe gramática! E é um catatau de dois aninhos!

A gramática que os alunos afirmam não saber é aquela que regula o uso da norma culta e que se tornou bastante popular nas escolas: a gramática normativa. Essa gramática é bastante específica, porque regula o que deve e o que não deve ser dito; ela é prescritiva e instaura a noção de erro em linguagem. A gramática da norma culta tem seu DNA, seu código genético, marcado por influências históricas, sociais e políticas. A língua também é um instrumento de poder e de coerção social e não só apenas um dos recursos que utilizamos para a comunicação. O fato de um modo de dizer ser mais prestigiado do que outro está ligado a muitas outras razões que não propriamente linguísticas. De qualquer forma, essa gramática de viés ideológico, que proíbe você de dizer: “Vou no cinema” (segundo a norma, o certo seria “Vou ao cinema”) e que protesta quando você inicia frase com pronome oblíquo, como “Me empresta o lápis?”, precisa fazer parte das aulas de língua portuguesa, os alunos devem conhecê-la, porque é a norma culta que se pratica em uma entrevista de emprego ou em outras situações de maior formalidade. A língua que o próprio aluno traz de casa, e que não é regulada pela norma culta e sim pelo uso, também deve ser valorizada e analisada, porque é tão funcional quanto essa regulada pela gramática normativa.

Uma terceira gramática ainda diz respeito a perspectivas de estudo sobre línguas. Há aqui um painel de possibilidades de estudos gramaticais, cada um deles com suas peculiaridades. Três exemplos apenas, há muitos outros: a gramática gerativa, voltada a aspectos cognitivos da linguagem, investiga a codificação e decodificação de novos enunciados pelo ser humano; a gramática normativa que, segundo Evanildo Bechara, não tem finalidade científica e sim pedagógica e recomenda como se deve falar e escrever segundo o uso e a autoridade dos escritores “corretos” e dos gramáticos e dicionaristas “esclarecidos”. Há ainda a gramática histórica, que é o estudo gramatical sob a perspectiva da evolução histórica dos fatos de uma língua.

Uma última gramática que pode ser citada aqui é a gramática como disciplina, como matéria de escola. Não é de hoje que muitas escolas particulares bem avaliadas dividem sua grade curricular de Língua Portuguesa em três frentes: Literatura, Produção de Textos e Gramática, muitas vezes com professores diferentes cuidando de cada frente de estudo. Na rede pública essa divisão não ocorre. Acontece que, em meu ponto de vista, essa separação não se sustenta e só serve para provocar desarmonia: como os estudos de texto, leitura e produção podem estar separados do estudo de gramática? É possível ler e escrever sem gramática? É possível estabelecer comunicação e interação só com gramática, sendo que a peça de comunicação verbal mais básica que existe é o texto? O que provavelmente predomina em aulas isoladas de gramática é a análise de frases soltas e artificiais, sem contexto e sem possibilidade de interação entre autores e leitores de texto. Trata-se de aulas que se concentram em classificações e definições, muitas vezes obscuras, como, por exemplo, descobrir que uma oração é subordinada substantiva subjetiva reduzida de infinitivo! A “Aula de Português” pode ser muito mais interessante e atraente do que ficar em sala de aula se concentrando em classificações e definições como essas. E a boa aula de português precisa começar por esclarecer o que entende por gramática, para o bem dos alunos.

 

RTRenato Tresolavy

Meu nome é Renato Luiz Tresolavy, sou editor de livros didáticos e fui professor de escola pública. Neste espaço do site Portuguêé Legal, gentilmente cedido pela minha amiga Carol Pereira, proponho discutir com estudantes, pais e professores assuntos que envolvem o ensino e aprendizagem de gramática, produção de textos, leitura e literatura. A cada semana, pretendo trazer aqui um tema diferente sobre o universo maravilhoso do Português.

 

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Por Renato Tresolavy

Na minha época de professor de Ensino Médio e EJA em escola pública, o que mais ouvia dos alunos no início do ano letivo era a confissão de que não sabiam gramática. Bastava que eu me apresentasse como o novo professor de português da turma e já podia ouvir suspiros e a queixa insistente:

– Professor, eu não sei nada de gramática!

Essa é uma opinião bem comum entre os alunos (não só entre alunos, no geral as pessoas sustentam a mesma tese, que é reforçada por muitos professores, infelizmente). Até compreensível, sem dúvida. Mas não deixa de ser preocupante também. Preocupa porque essa declaração deixa bastante claro que continua firme e forte a ideia de que aula de língua portuguesa é a mesma coisa que aula de gramática. Definitivamente não é, por pelo menos dois motivos: o estudo de língua portuguesa não se reduz só à gramática (e o estudo de texto, de gêneros textuais, de leitura, de oralidade e literatura?); e de fato não existe apenas uma gramática, há gramáticas. Reduzir o escopo da disciplina a apenas uma de suas partes constituintes e não considerar suas diversas possibilidades comprometem estudos importantes dentro da disciplina.

Justamente por esses dois motivos e para começar a derrubar alguns mitos que cercam as aulas de Língua Portuguesa, eu gostava de iniciar o curso aproveitando essa lamentação da classe para lançar uma provocação que invariavelmente deixava a turma confusa:

– Ora, mas de qual gramática vocês estão falando? Quais gramáticas vocês afirmam não conhecer?

Logo depois das perguntas vinha um silêncio. Nesse silêncio eu percebia no olhar dos alunos um misto de dúvida e desconfiança. Provavelmente duvidavam do que eu estava falando, desconfiavam de que eu falava besteira, certamente pensavam: Xiiii, esse professor tá louco! Mas logo eu tratava de provar que sim, eles sabem gramática, e desde muito cedo, ainda crianças, com 2 ou 3 anos de idade, já sabiam bem gramática, pelo menos uma das gramáticas que fazem parte do universo dos estudos de língua e linguagem. E que também existem outras gramáticas que eles ainda não necessariamente conhecem.

Na verdade, quando se fala de “Gramática”, pouca gente desconfia que pode estar se referindo a muitas coisas diferentes ao mesmo tempo. Segundo Irandé Antunes em seu livro “Muito Além da Gramática”, existe mais de uma gramática, cada uma diferente da outra, todas elas importantes e válidas dentro de seus limites e possibilidades. Vamos discutir neste texto quatro gramáticas diferentes que existem.

A gramática que os alunos conhecem com certeza (mas acreditam não conhecer) é a gramática internalizada, aquela que define o funcionamento de uma língua, de qualquer língua, não só da portuguesa (ou brasileira, por que não?!). Todos nós conhecemos totalmente essa gramática, desde bem pequenos. Quem fala uma língua sabe automaticamente a gramática dessa língua.  Vamos provar a existência dessa gramática: todos nós sabemos intuitivamente que o artigo, em português, ocorre antes do substantivo, em qualquer situação, e que a preposição que forma o complemento de verbo transitivo indireto, o objeto indireto, deve introduzir esse complemento. Ninguém diz: “Menino O caiu escada da.” Dizemos “O menino caiu da escada.” Ninguém precisou nos ensinar essas coisas, já sabemos que nossa língua funciona assim sem ao menos perceber. Outro exemplo: nesse calor insuportável que faz em São Paulo, tomar banho de piscina é irresistível. Meu sobrinho de 2 anos e meio ficou fascinado pela piscina do condomínio onde moro. Perguntamos para ele, em tom de brincadeira: – Nós vamos até a piscina!? E ele, rapidamente, disse: – Vamos! Veja que ele não disse “Vai”, “Vão” ou mesmo “Vou”. O menino empregou o verbo nas flexões corretas, de tempo e modo. Ele nem repetiu o pronome sujeito “Nós” e dispensou complementos redundantes, como “na piscina”, porque essas informações faziam parte do contexto de interação daquela conversa. Meu sobrinho sabe gramática! E é um catatau de dois aninhos!

A gramática que os alunos afirmam não saber é aquela que regula o uso da norma culta e que se tornou bastante popular nas escolas: a gramática normativa. Essa gramática é bastante específica, porque regula o que deve e o que não deve ser dito; ela é prescritiva e instaura a noção de erro em linguagem. A gramática da norma culta tem seu DNA, seu código genético, marcado por influências históricas, sociais e políticas. A língua também é um instrumento de poder e de coerção social e não só apenas um dos recursos que utilizamos para a comunicação. O fato de um modo de dizer ser mais prestigiado do que outro está ligado a muitas outras razões que não propriamente linguísticas. De qualquer forma, essa gramática de viés ideológico, que proíbe você de dizer: “Vou no cinema” (segundo a norma, o certo seria “Vou ao cinema”) e que protesta quando você inicia frase com pronome oblíquo, como “Me empresta o lápis?”, precisa fazer parte das aulas de língua portuguesa, os alunos devem conhecê-la, porque é a norma culta que se pratica em uma entrevista de emprego ou em outras situações de maior formalidade. A língua que o próprio aluno traz de casa, e que não é regulada pela norma culta e sim pelo uso, também deve ser valorizada e analisada, porque é tão funcional quanto essa regulada pela gramática normativa.

Uma terceira gramática ainda diz respeito a perspectivas de estudo sobre línguas. Há aqui um painel de possibilidades de estudos gramaticais, cada um deles com suas peculiaridades. Três exemplos apenas, há muitos outros: a gramática gerativa, voltada a aspectos cognitivos da linguagem, investiga a codificação e decodificação de novos enunciados pelo ser humano; a gramática normativa que, segundo Evanildo Bechara, não tem finalidade científica e sim pedagógica e recomenda como se deve falar e escrever segundo o uso e a autoridade dos escritores “corretos” e dos gramáticos e dicionaristas “esclarecidos”. Há ainda a gramática histórica, que é o estudo gramatical sob a perspectiva da evolução histórica dos fatos de uma língua.

Uma última gramática que pode ser citada aqui é a gramática como disciplina, como matéria de escola. Não é de hoje que muitas escolas particulares bem avaliadas dividem sua grade curricular de Língua Portuguesa em três frentes: Literatura, Produção de Textos e Gramática, muitas vezes com professores diferentes cuidando de cada frente de estudo. Na rede pública essa divisão não ocorre. Acontece que, em meu ponto de vista, essa separação não se sustenta e só serve para provocar desarmonia: como os estudos de texto, leitura e produção podem estar separados do estudo de gramática? É possível ler e escrever sem gramática? É possível estabelecer comunicação e interação só com gramática, sendo que a peça de comunicação verbal mais básica que existe é o texto? O que provavelmente predomina em aulas isoladas de gramática é a análise de frases soltas e artificiais, sem contexto e sem possibilidade de interação entre autores e leitores de texto. Trata-se de aulas que se concentram em classificações e definições, muitas vezes obscuras, como, por exemplo, descobrir que uma oração é subordinada substantiva subjetiva reduzida de infinitivo! A “Aula de Português” pode ser muito mais interessante e atraente do que ficar em sala de aula se concentrando em classificações e definições como essas. E a boa aula de português precisa começar por esclarecer o que entende por gramática, para o bem dos alunos.

 

RTRenato Tresolavy

Meu nome é Renato Luiz Tresolavy, sou editor de livros didáticos e fui professor de escola pública. Neste espaço do site Portuguêé Legal, gentilmente cedido pela minha amiga Carol Pereira, proponho discutir com estudantes, pais e professores assuntos que envolvem o ensino e aprendizagem de gramática, produção de textos, leitura e literatura. A cada semana, pretendo trazer aqui um tema diferente sobre o universo maravilhoso do Português.

 

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Comentários


Andreia Silva de Jesus

Adorei o texto! Perfeita as suas colocações! Em nossa longa jornada estudantil, aprendemos e nos acostumamos com aquela gramática “engessada” cheias de regras e normas. Mas que aprendi a gostar e sempre tive mais familiaridade.
Vou iniciar o curso de Letras esse ano..E suas ideias abriram a minha mente. Nunca tinha sequer visto a gramática e português por essa ótica.
Parabéns!

Valéria Araujo

Muito bom!Vc esclarece de forma concisa e objetiva coisas fundamentais que todo professor deveria saber mas infelizmente desconhece.Acho que a primeira aula de português deve começar com a reflexão sobre a gramática que o aluno fala e a que é ensinada nas escolas.Parabéns!

elaine

Prezado Professor, bom dia!

Qual livro indicaria para estudos Português escrita formal, para minha filha que fará prova para área Direito.

Grata

Elaine


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