9 Abril 2016

Atenção: contém spoilers.

O filme A garota dinamarquesa conta a história de Lili Elbe (Eddie Redmayne), que nasceu com o nome Einar e foi a primeira pessoa a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo. Einar era um pintor dinamarquês casado com Gerda (Alicia Vikander) e vive alguns episódios que o levam, aos poucos, a questionar sua identidade de gênero e se descobrir uma mulher. O que esse filme pode nos contar sobre nossa relação com a língua que falamos?

Ao longo do filme, as legendas me chamaram atenção a partir do momento em que o personagem Einar passou a usar o gênero feminino em suas falas. A estranheza veio do fato de que, como a língua inglesa não tem flexão de gênero, o ator dizia uma mesma frase tanto nos momentos em que seu personagem se identificava como homem quanto como mulher (por exemplo, “I’m tired”), mas na legenda em português havia uma diferenciação (seja “estou muito cansado” ou “estou muito cansada”). É provável que tenha cabido aos tradutores que fizeram a legenda a decisão sobre em que momentos o personagem se expressaria como uma mulher, se seria somente quando estivesse se apresentando como Lili, se haveria alternância entre masculino e feminino ao longo do tempo, se a fala estaria diretamente vinculada ao fato de estar vestindo roupas consideradas femininas, se a presença de desconhecidos teria impacto sobre o gênero de fala escolhido, se o gênero feminino apareceria somente em situações mais clandestinas etc. – um dilema inexistente para falantes de língua inglesa.

Inicialmente, foram os impasses e dificuldades de tradução que me fizeram despertar para o quanto a língua que uma pessoa fala interfere nas experiências que vive e pode delinear a maneira como lida com o mundo. Se pensarmos para além do texto, parece plausível afirmar que um falante da língua portuguesa (ou espanhola, francesa, ou qualquer outra com flexão de gênero) teria uma etapa a mais no processo de se reconhecer como alguém de outro gênero, que seria a mudança do gênero de fala. Se tomarmos a cartunista Laerte como exemplo, fica fácil observar o impasse ou o desconforto que esse traço da fala causa, uma vez que, mesmo se identificando como mulher e usando o gênero feminino para falar, a cartunista ainda aparece em muitas publicações sendo referida por termos no masculino. Em países falantes de línguas sem flexão de gênero, essa discussão não ocorreria.

Esse breve exemplo ajuda a entender como a língua que a gente fala recorta as experiências que vivemos e pode, em muitas situações, ajudar a definir quem somos.

@carolinajesper

lili

Atenção: contém spoilers.

O filme A garota dinamarquesa conta a história de Lili Elbe (Eddie Redmayne), que nasceu com o nome Einar e foi a primeira pessoa a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo. Einar era um pintor dinamarquês casado com Gerda (Alicia Vikander) e vive alguns episódios que o levam, aos poucos, a questionar sua identidade de gênero e se descobrir uma mulher. O que esse filme pode nos contar sobre nossa relação com a língua que falamos?

Ao longo do filme, as legendas me chamaram atenção a partir do momento em que o personagem Einar passou a usar o gênero feminino em suas falas. A estranheza veio do fato de que, como a língua inglesa não tem flexão de gênero, o ator dizia uma mesma frase tanto nos momentos em que seu personagem se identificava como homem quanto como mulher (por exemplo, “I’m tired”), mas na legenda em português havia uma diferenciação (seja “estou muito cansado” ou “estou muito cansada”). É provável que tenha cabido aos tradutores que fizeram a legenda a decisão sobre em que momentos o personagem se expressaria como uma mulher, se seria somente quando estivesse se apresentando como Lili, se haveria alternância entre masculino e feminino ao longo do tempo, se a fala estaria diretamente vinculada ao fato de estar vestindo roupas consideradas femininas, se a presença de desconhecidos teria impacto sobre o gênero de fala escolhido, se o gênero feminino apareceria somente em situações mais clandestinas etc. – um dilema inexistente para falantes de língua inglesa.

Inicialmente, foram os impasses e dificuldades de tradução que me fizeram despertar para o quanto a língua que uma pessoa fala interfere nas experiências que vive e pode delinear a maneira como lida com o mundo. Se pensarmos para além do texto, parece plausível afirmar que um falante da língua portuguesa (ou espanhola, francesa, ou qualquer outra com flexão de gênero) teria uma etapa a mais no processo de se reconhecer como alguém de outro gênero, que seria a mudança do gênero de fala. Se tomarmos a cartunista Laerte como exemplo, fica fácil observar o impasse ou o desconforto que esse traço da fala causa, uma vez que, mesmo se identificando como mulher e usando o gênero feminino para falar, a cartunista ainda aparece em muitas publicações sendo referida por termos no masculino. Em países falantes de línguas sem flexão de gênero, essa discussão não ocorreria.

Esse breve exemplo ajuda a entender como a língua que a gente fala recorta as experiências que vivemos e pode, em muitas situações, ajudar a definir quem somos.

@carolinajesper

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