18 Março 2015

Por Renato Tresolavy

Sou fã de contos mais do que de romances. Adoro aquelas coletâneas recheadas de contos de vários autores ou mesmo coletâneas de contos de um mesmo autor, tanto faz. Um de meus livros favoritos do gênero é a coletânea de contos escolhidos pelo escritor italiano Ítalo Calvino e publicada pela Companhia das Letras: Contos Fantásticos do Século XIX. O livro é imperdível.

Calvino escolheu 26 contos para compor a coletânea, histórias de Guy de Maupassant, Henry James, Charles Dickens, Edgar Allan Poe e muitos outros escritores famosos de diferentes tradições literárias. Cada um desses contos nos coloca frente a frente com o sobrenatural. São histórias de fantasmas, de muito mistério e de horror, contos que misturam sonho, pesadelo e realidade e que nos atiram em uma atmosfera de tensão e medo constantes. Para se ter uma ideia, alguns desses contos já nos assustam pelo título: O olho sem pálpebra, de Philarète Chasles (1799-1873), e A morte amorosa, de Theóphile Gautier (1811-1872), são dois exemplos. No livro, há muitos outros títulos sinistros. Contudo, como diz o meu filho, não quero dar muitos spoilers (em português, em tradução livre, seria estraga-prazeres) para não estragar a surpresa daqueles que não conhecem a obra.

Foi esse livro de contos que me motivou a escrever nesta semana. Mas não para falar exatamente do livro em si e de seus contos assombrosos, e sim de uma passagem dele que me fez relembrar um dos quatro tipos de produção de texto conhecidos: a descrição. As outras três produções são a narração, a argumentação e a injunção. O tema deste texto é a descrição como tipo textual, seu conceito e suas características. As descrições presentes nos contos da coletânea organizada por Calvino chamam a atenção pelo detalhamento de informações e pela expressividade dos recursos linguísticos empregados em cada conto.

Descrições são mais comuns do que a gente imagina e estão presentes em textos de diversos gêneros, de textos literários a manuais de instruções. Também não são raras as ocasiões, em nossa comunicação diária, em que sentimos necessidade de descrever algo, alguém ou mesmo algum lugar para nosso interlocutor. Nesses momentos, temos de fazer um bom uso das palavras para dar forma ao que queremos explicar ou apresentar, seja uma pessoa, um objeto, seja um determinado local. Como os outros três tipos de texto, a descrição tem uma estrutura particular que obedece a alguns passos básicos: é importante observar e selecionar aquilo que vai ser descrito e suas características, ordenar as informações e só depois elaborar o texto. Comparações e metáforas, além de adjetivos, são recursos linguísticos comuns para compor descrições.

Há diferentes tipos de descrições, que se caracterizam, por exemplo, pela objetividade ou subjetividade: a descrição técnica deve ser objetiva e precisa, é própria de textos científicos e tem caráter informativo; a descrição literária, por sua vez, é subjetiva e expressiva, tem caráter estético e visa provocar emoções. Independentemente do tipo, as descrições devem realçar detalhes, isto é, o segredo de uma boa descrição é destacar minúcias do alvo a ser descrito.

Na literatura, há uma descrição característica chamada retrato. O retrato apresenta pessoas ou personagens, e quando essa modalidade de descrição se concentra na aparência externa do ser descrito recebe o nome de prosopografia. Quando se concentra em personalidade, ideias e sentimentos, ganha o nome de etopeia. É importante dizer que tanto a prosopografia quanto a etopeia podem aparecer em um mesmo trecho descritivo, ou seja, um tipo de retrato não exclui o outro. No entanto, no caso do excerto que selecionei como exemplo de descrição, só a prosopografia aparece.

Retirei o trecho em questão do conto A morte amorosa, de Theóphile Gautier. A história toca no tema dos mortos-vivos, no caso específico do conto, de uma morta-viva, uma vampira, cujo nome é Clarimonde. Romuald, sacerdote recém-ordenado, fica completamente transtornado quando percebe a presença daquela estranha mulher na cerimônia de seu ordenamento. Uma tentação irresistível que o fazia vacilar irremediavelmente. De acordo com o próprio Romuald, “moça de beleza rara e vestida com a magnificência dos reis. Foi como se escamas estivessem caindo de minhas pupilas. Tive a sensação de um cego que subitamente recuperasse a visão.”

Hipnotizado pela figura de Clarimonde, Romuald começa a descrever a moça em seus detalhes, apresentando a vampira ao leitor, que ainda não a conhece. É possível perceber na descrição o ponto de vista de Romuald sobre a pessoa que observa: o padre descreve Clarimonde de forma subjetiva e idealizada, tudo nela é perfeito. Vemos aquilo que Romuald vê; sob o ponto de vista dele conhecemos essa vampira perturbadora. Esse é um típico caso de descrição presente em textos literários, como contos e romances.

A descrição que Romuald faz de Clarimonde é preparada e executada de forma magistral: primeiro há a observação do ser descrito, depois a seleção de características, em seguida a organização de informações e redação do texto. Os olhos de Romuald passeiam pelo corpo de Clarimonde, depois pelos cabelos, passam pela face da moça, concentram-se nos olhos, ressaltam o nariz da vampira etc. A descrição adota uma direção que parte do mais geral para chegar ao particular, do corpo para cada parte dele. Depois, Romuald volta a enxergar Clarimonde de forma mais geral, apresentando a cor nacarada (rosada ou carmim) do vestido que usava, detalhando logo depois as mãos da moça. Adjetivos, comparações e metáforas são cuidadosamente selecionados. Nós leitores acabamos também hipnotizados por aquela criatura tão inusitada quanto sedutora. Com vocês, então, a vampira Clarimonde:

 

            “Era bastante alta, com um corpo e um porte de deusa; seus cabelos, de um louro suave, se separavam no alto da cabeça e escorriam sobre as têmporas como dois rios de ouro; parecia uma rainha com seu diadema; sua fronte, de uma brancura azulada e transparente, estendia-se larga e serena sobre as arcadas de dois cenhos quase marrons, singularidade que realçava ainda mais o efeito das pupilas verde-mar de uma vivacidade e um brilho insuportáveis. Que olhos! Como um raio, decidiram o destino de um homem; tinham uma vida, uma limpidez, um ardor, a humanidade brilhante que eu nunca tinha visto num olho humano; dali escapavam raios parecidos com flechas e que eu via nitidamente atingirem meu coração. Não sei se a chama que os iluminava vinha do céu ou do inferno, mas com toda a certeza vinha de um ou outro. Aquela mulher era um anjo ou demônio, e talvez os dois; certamente não saía do flanco de Eva, a mãe comum. Dentes da mais bela cor de pérola do Oriente cintilavam em seu sorriso vermelho, e pequenas covinhas se abriam a cada inflexão da boca no cetim rosa de suas faces adoráveis. Quanto ao nariz, era de uma fineza e de um orgulho imperiais, e indicava a mais nobre origem. O reflexo brilhante das ágatas brincava sobre a pele lisa e acetinada de seus ombros seminus, e fileiras de grandes pérolas claras, de um tom quase semelhante ao de seu pescoço, desciam sobre o colo. De vez em quando ela mexia a cabeça com um movimento ondulante de cobra ou de pavão que estufa o peito, o que conferia um leve arrepio à gola alta, plissada e bordada que a envolvia como uma treliça de prata.
Usava um vestido de veludo nacarado, e de suas largas mangas forradas de arminho saíam mãos patrícias de uma delicadeza infinita, com dedos compridos e redondos, e de uma transparência tão ideal que deixavam passar o dia como os da aurora.”

 

 

RTRenato Tresolavy

Meu nome é Renato Luiz Tresolavy, sou editor de livros didáticos e fui professor de escola pública. Neste espaço do site Portuguêé Legal, gentilmente cedido pela minha amiga Carol Pereira, proponho discutir com estudantes, pais e professores assuntos que envolvem o ensino e aprendizagem de gramática, produção de textos, leitura e literatura. A cada semana, pretendo trazer aqui um tema diferente sobre o universo maravilhoso do Português.

 

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