31 Julho 2014

“Estão assassinando a língua portuguesa”
“Como alguém espera ser levado a sério se não sabe nem falar?”
“Quem escreve ‘a gente’ junto perde muitos pontos comigo”
“Ela disse que foi estrupada (sic)”

Aqui vai o que temos a dizer sobre tudo isso:

De tempos em tempos, recebemos mensagens de pessoas indignadas querendo denunciar a grande incoerência do nosso site, anunciado com a “missão” de apresentar dicas sobre a norma-padrão da língua portuguesa (ou seja, aquela variedade oficial aceita como correta e ensinada nas escolas) e, ao mesmo tempo, compartilhar reflexões contra o preconceito linguístico. “Não sejam hipócritas”, eles dizem, “vocês escrevem corretamente e afirmam que tudo bem as pessoas falarem do jeito delas. Não querem que os outros aprendam?”.

Um breve desvio de rota antes de nos aprofundarmos: ensinamos português para proporcionar uma ampliação de conhecimentos, não para impor uma variedade linguística a uma pessoa que não é falante dela. A língua oficial precisa ser ensinada por ser um dos instrumentos que permite que uma pessoa atue politicamente, mas seu ensino não pode ser opressor. É preciso partir do pressuposto de que não é necessário aprender a “falar direito” para se tornar cidadão; a cidadania é um direito e não algo a ser alcançado. Se as pessoas crescem sem conhecer a língua-padrão, trata-se, na maioria dos casos, de uma dívida do Estado, que não a proporcionou adequadamente. Ninguém pode ficar fadado ao silêncio eterno para não machucar os ouvidos estudados de quem não aprendeu ainda que a língua é de todos, que ela muda e que os modos de falar variam mesmo na esfera individual.

Quem defende que todos os falares sejam respeitados é acusado com frequência de querer que os semianalfabetos, em geral pobres, continuem estagnados na mesma posição social. O que não compreendem, entretanto, é que o ensino não se dá à base de condenação e deboche. Quem zomba de quem “fala errado” ou reproduz seus “erros” com a intenção de escancarar qualquer tipo de inferioridade daqueles que não tiveram oportunidade de aprender o padrão oficial da língua não está se colocando a favor deles; pelo contrário: essas frases evidenciam uma busca por distanciamento, uma tentativa de mostrar que não pertencem ao mesmo grupo, que fazem parte do conjunto seleto dos que conhecem as maneiras corretas de falar ou escrever, supostamente um indício de sua elevação moral e espiritual.

Na mídia impressa, é o “sic” entre parênteses que aparece com a função de apontar os erros que tanto incomodam a quem os identifica. É o que se vê, por exemplo, no texto de um portal de notícias que transcreveu o depoimento de um gari sobre a greve da seguinte maneira: “É um movimento legítimo, aonde (sic) o gari anseia ser reconhecido pelo prefeito”. Ora, mesmo nos meios considerados cultos, “onde” e “aonde” são, com frequência, usados indiscriminadamente, visto que poucos conhecem as convenções que normatizam os usos de cada um desses termos. O “sic” é uma maneira de apontar o dedo dizendo “vejam todos o erro que eu, detentor supremo da norma-padrão, identifiquei”, o que fica nítido por se tratar de um contexto em que a declaração feita deveria ser o único foco de atenção. Não é diferente nos casos em que noticiam mulheres se dizendo vítimas de estupro e que, lamentavelmente, têm sua fala transcrita assim: “estrupo (sic)”. Fica difícil discordarmos do linguista Luiz Antônio Marcuschi quando ele diz que “a transcrição pode reproduzir preconceitos na medida em que discrimina os falantes, deixando, para uns, evidências socioletais em marcas gráficas, anulando essas evidências, para outros”.

Em uma busca rápida por portais de notícia, é possível perceber que esse tipo de ocorrência não costuma ser registrado na maioria dos depoimentos feitos por autoridades, mas é abundante quando se trata de reproduzir falas de garis, empregadas domésticas, travestis e outros grupos comumente discriminados na sociedade.

Há algo de errado quando a gente acha que o modo como uma pessoa fala ou escreve é mais importante do que o que é dito. Partimos do princípio de que respeitar todas as variedades é essencial, mas cientes de que isso não pode ser usado como desculpa para negligenciar o ensino da norma-padrão. Nosso objetivo não é ensinar ninguém a “falar direito” ou a “não cometer erros”, e tampouco queremos dar a impressão de que as pessoas têm a obrigação de conhecer a norma-padrão da nossa língua. Mas achamos que todo mundo tem o direito de conhecê-la. Por isso, procuramos popularizá-la, sim, mas respeitando o conhecimento prévio de cada um, e não classificando-o como incorreto e inadequado. Recorrendo ao Marcuschi novamente, é preciso admitirmos que “a escrita não acrescenta massa cinzenta ao indivíduo que a domina bem como o não domínio da escrita não é evidência de menor competência cognitiva. Deve-se, pois, distinguir entre o conhecimento e a capacidade cognitiva. Quem domina a escrita pode, eventualmente, ter acesso a um maior número de conhecimentos”.

Por fim, não custa lembrar que o preconceito linguístico é só uma maneira de esconder o preconceito social, um preconceito que – esse, sim – estamos longe de superar.

 

Carol é formada em Letras, trabalha com livros didáticos e faz mestrado em Educação. carolinajesper@gmail.com | @minaszilda
Pablo é formado em Letras e trabalha como professor de inglês e tradutor. pblmartins@gmail.com | @pblmartins

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curta-morris-3Imagem: The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore

 

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23 Maio 2014

 

Em 2008, quando era bolsista de Iniciação Científica, entrevistei algumas pessoas mostrando anúncios publicitários selecionados por conterem texto em inglês e fazendo perguntas como “O que está sendo anunciado aqui?”, “Você se interessaria por esse produto?” etc. Um desses anúncios trazia uma paisagem campestre, com uma árvore ao fundo, bolas azuis na grama, um cavalo branco e um casal que se abraçava de forma sensual. O único texto era “Powered by Pfizer”, mais ou menos o que você pode ver aqui (falta o cavalo nesta versão). Depois de 30 entrevistas, duas me chamaram muita atenção: a primeira com uma pessoa que, convicta, afirmou: “Mais uma vez é o governo mostrando a necessidade de cuidar do meio ambiente, preservar a natureza, cuidar das árvores…”. O outro entrevistado respondeu, quando perguntei o que estava sendo anunciado, que certamente se tratava de uma propaganda dirigida a fazendeiros que quisessem adquirir animais. Não os informei à época, mas o anúncio era do medicamento Viagra.

Em 2009, ouvi sem querer uma conversa de duas mulheres que falavam sobre um programa de televisão que oferecia cirurgias bariátricas a moças obesas e as acompanhava posteriormente para observar suas mudanças. O comentário que ouvi dizia respeito ao fato de as moças operadas terem ficado loiras um tempo depois da cirurgia. “É impressionante mexer no estômago e afetar a cor do cabelo, não é?”, disse uma, ao que a outra respondeu “pois é”.

Em 2010, uma amiga editora estava indignada com um profissional que havia cometido alguns equívocos em sua tradução, como o de escrever que uma loja vendia “40 LPs” quando, na verdade, o texto original dizia “LPs da década de 40” (40’s LPs, em inglês).

Em 2011, grande parte da mídia brasileira se manifestou contrariamente a uma coleção de livros didáticos chamada “Viver, aprender” alegando que o MEC havia aprovado um material que “ensina o aluno a falar errado”. Não pretendo chutar porta aberta com polêmica que já caducou, mas suponho que alguns tenham saído com uma conclusão equivocada depois da querela midiática.

Em todos esses casos, um pouco de pulga atrás da orelha teria evitado problemas de interpretação e convicções equivocadas. Faltou acender aquela luz vermelha que faz a gente se perguntar: SERÁ? Por que enfeitar com bolas azuis um anúncio de conscientização sobre a natureza? Será mesmo que uma cirurgia seria capaz de alterar a cor do cabelo de alguém? Por que alguém abriria uma loja para vender apenas 40 LPs? E os especialistas do MEC, por que defenderiam que os alunos aprendessem algo errado?

O que isso tudo tem a ver com português eu explico agora. Muitos equívocos de interpretação de texto e de tradução, por exemplo, parecem ser consequência de um momento em que faltou a pessoa parar e se dizer “mas espera, isso não faz sentido”. Pulga atrás da orelha também vale para dúvidas de ortografia: quem desconfia vai atrás, checa e aprende. Embora todos estejamos sujeitos a cometer equívocos, cabe pensar bem sobre esses exemplos e perceber que não se trata de acertar questões da prova de português, mas de evitar que algo evitável acabe afetando outras esferas de nossas vidas.

 

carol-pereira-portugueselegal Carol tem graduação em Letras, mestrado em Educação, e é editora de livros didáticos de português e inglês. carolinajesper@gmail.com

  Em 2008, quando era bolsista de Iniciação Científica, entrevistei algumas pessoas mostrando anúncios publicitários selecionados por conterem texto em inglês e fazendo perguntas como “O que está sendo anunciado aqui?”, “Você se interessaria por esse produto?” etc. Um desses anúncios trazia uma paisagem campestre, com uma árvore ao fundo, bolas azuis na grama, um […]

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27 Dezembro 2013

Trecho do poema Cântico negro, do escritor José Régio.

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9 Dezembro 2013

Neste vídeo, explicamos um pouco sobre as ideias que nos guiam na execução deste projeto.

Bem-vindos!

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