Não dá pra negar: nós julgamos as pessoas com base na maneira como elas falam. Questionamos quando alguém que ocupa um cargo alto comete desvios em relação à norma-padrão da língua, ridicularizamos quem parece assassinar a língua portuguesa (leia mais) e duvidamos de que um presidente que “não sabe nem falar” possa governar nosso país. O fato é: estamos errados. Se nos julgamos cultos e aptos o bastante a ponto de podermos avaliar a fala dos outros, certamente também poderemos tentar entender a razão que a desencadeia. É uma maneira de perceber que o funcionamento da língua é mais complexo do que parece e de pararmos de simplesmente nos queixar em nome de nossos ouvidos sensíveis, que não sabem lidar com variantes da nossa língua. Alguns exemplos:
Menas é mais
As pessoas aprenderam que as palavras relacionadas a substantivos femininos devem ficar no feminino. Por exemplo:
muitos homens, muitas mulheres
muitos dias, muitas vezes
muito sono, muita vontade
E, seguindo o mesmo raciocínio, dizem:
Menos cansado, menas cansada
Menos pesado, menas pesada
O “menos”, porém, não tem flexão de gênero. Sendo assim, “menas”, em teoria, não existe. Por que motivo, então, as pessoas usam essa palavra?
Quem diz “menas” usa sempre com palavra feminina. Ninguém vai falar “menas dias” ou “menas homens”, mas sim “menas horas”, “menas vezes”, “menas oportunidades”, “menas fome”. Ou seja: estão aplicando a flexão de gênero, o que estaria certo em quase todos os outros contextos, mas não nesse. O raciocínio está certo. Não se trata de um erro absurdo, de ignorância, burrice ou incompetência. É apenas uma exceção que algumas pessoas desconhecem. Mais que isso: podemos considerar um caso de hipercorreção, pois é justamente por ter um conhecimento que esse equívoco é cometido. O “problema” (que, convenhamos, não constitui de fato um problema) é que um conhecimento que foi adquirido está sendo aplicado em mais contextos do que deveria. Uma pequena inadequação, nada grave.
A flor de zíaco
Podemos até achar engraçado, mas antes de deslegitimarmos o indivíduo que fez esse registro, cabe perguntar: Que caminho foi percorrido para que “afrodisíaco” se tornasse “a flor de zíaco”?
Comecemos pela “flor”. Em algumas regiões, é comum a troca do L pelo R (rotacismo, o mesmo fenômeno percebido em “frauta”, “Craudio”, “pranta” etc.), bem como a supressão do R final (como em “dotô”, “amô”, “calô”). Não seria estranho supor, portanto, um falante que refletisse consigo: “bem, eu falo FRÔ, mas a gente escreve FLOR”. Pensemos agora sobre a sílaba “di”, em “afrodisíaco”. Como é comum pronunciarmos i em palavras terminadas com a letra E, seria plausível supor novamente que o falante se convenceu de que falamos “di”, mas devemos escrever “de”. Ou seja, o raciocínio que transformou “afrodisíaco” na flor de zíaco é completamente lógico! Essa nova segmentação, embora provoque risos, não pode ser considerada um resultado de ignorância, uma vez que foram justamente os SABERES do falante que resultaram nela.
Quem tem um pobrema tem dois
E quem diz essa frase também tem um problema, que é nunca ter estudado a história da nossa língua (e de outras). O rotacismo, nome dado ao fenômeno de trocar L por R (e vice-versa), é algo verificado ao longo da evolução de várias línguas. No caso do português, há muitas palavras que hoje usamos com R mas que, em sua origem, eram grafadas e pronunciadas com L. Tiramos alguns exemplos de um livro do professor Marcos Bagno:
blandu > brando
flaccu > fraco
obligare > obrigar
plica > prega
Essas mudanças são próprias das línguas! Quando temos mais facilidade para pronunciar determinados sons, tendemos a preferi-los em detrimento de outros. A lei do mínimo esforço é bastante comum nessa área, ou alguém acha que “vossa mercê” era mais fácil de pronunciar que “você”? E por que cortamos o R final do infinitivo dos verbos (“estudá”, “fazê”, “comê”)?
Se achamos que uma pessoa não merece ser ouvida porque não conhece todas as convenções da língua, quem tem um problema somos nós.
Por fim…
Não custa lembrar que a nossa mania de rir de quem “fala errado” é menos uma preocupação linguística que nosso ímpeto por discriminar o diferente. Como disse o professor Sírio Possenti: “No fundo, o preconceito linguístico é um preconceito social. É uma discriminação sem fundamento que atinge falantes inferiorizados por alguma razão e por algum fato histórico. Os que dizemos que falam errado são apenas cidadãos que seguem outras regras e que não têm poder para ditar quais são as elegantes.”
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PS: Proponho um exercício rápido. Quando criticamos quem comete algum desvio em nossa língua, nos esquecemos de que existem sempre aquelas normas que desconhecemos. Veja as dicas abaixo e responda: você sabia? 🙂
1. A palavra “siclano” não consta em nenhum dicionário! O correto é dizer “fulano, beltrano e sicrano”.
2. “Dó” é uma palavra masculina, portanto, se quisermos ser grammarnazis, deveremos dizer “me deu um dó!” e não “uma dó”.
3. A conjugação correta do verbo VER é “se eu vir”, e não “se eu ver”.
4. Embora seja comum ouvirmos “a champanhe”, essa palavra está registrada em boa parte dos dicionários como substantivo masculino, e no VOLP como substantivo de dois gêneros!
5. Uma crise pode por “em XEQUE” o futuro de nossa cidade, e não “em cheque”.
6. Quem nasce na Bahia é baiano, sem H.
7. Quem torce pro Corinthians é corintiano, sem H.
8. “Mascote” é um substantivo feminino.
9. A frase “Gosto de livros que baseiam-se em histórias reais” está errada. Obrigatoriamente, devemos dizer “livros QUE SE BASEIAM”, pois o “que” atrai o “se”.
10. “Grama” é um substantivo feminino quando estamos falando daquela ervinha verde de jardim. Já a unidade de medida é um substantivo masculino. Por isso pedimos duzentos gramas de presunto, e não duzentas.
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